Escudo invisível

Por Karen Cardial

Em 2022, o Disque 100canal nacional de denúncias de violações de direitos humanos – recebeu mais de 18 mil queixas de violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil. E a estimativa é que apenas um em cada dez casos chegue às autoridades. “Isso significa que a imensa maioria permanece invisível, muitas vezes por toda a vida”, alerta Caroline Arcari, escritora, pedagoga, mestra em Educação Sexual pela UNESP, com obras premiadas pela UNICEF, Fundação ABRINQ, Ministério da Saúde, entre outras instituições de proteção à infância.

Segundo a especialista, a escola é o lugar onde a prevenção pode acontecer de forma estruturada, especialmente quando a violência vem de dentro de casa. “É na escola que a criança encontra outros adultos de confiança. E é lá que ela pode ter acesso à informação e aprender que existe um caminho de ajuda.”

Caroline lembra que violência sexual não é apenas o ato com contato físico. “Há crimes virtuais, como produção, compartilhamento e consumo de material sexual de crianças e adolescentes.” Ela explica que abuso sexual e exploração sexual não são a mesma coisa. O abuso, afirma, “costuma acontecer no ambiente intrafamiliar, quando o adulto se aproveita da relação de cuidado, afeto e poder que tem sobre a criança para estabelecer atividades sexuais abusivas”. Já a exploração sexual, prossegue, “ocorre quando alguém se aproveita da vulnerabilidade da vítima para obter uma atividade sexual em troca de dinheiro ou outro tipo de benefício, seja financeiro ou social”. No Brasil, essa prática é pouco denunciada porque, em muitas regiões, é naturalizada, especialmente quando envolve meninas adolescentes, expostas a uma situação de extrema vulnerabilidade.

“Educação sexual não ensina a fazer sexo. Ensina a reconhecer abusos e a se proteger.” (Caroline Arcari)

"A escola é o lugar onde a prevenção pode acontecer de forma estruturada, especialmente quando a violência vem de dentro de casa." (Caroline Arcari)

Ainda existe uma resistência considerável de famílias e escolas em tratar do tema.

Caroline observa que, muitas vezes, a abordagem se limita à resposta de perguntas pontuais dos estudantes, sem aprofundamento nem continuidade. “Educação sexual não é reativa: é um trabalho contínuo, baseado em evidências científicas, que considera o desenvolvimento de crianças e adolescentes”, explica. É o que já acontece na Suécia e na Holanda, seguindo orientações da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura).

No Brasil, essa diretriz também está prevista na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que orienta o trabalho pedagógico para que a sexualidade seja abordada de forma integrada, articulada a temas como respeito, cuidado e direitos humanos.

Mas, segundo a especialista, falta política pública e formação docente. “A ausência de preparo deixa muitos professores inseguros, com medo de falar sobre o assunto ou de enfrentar reações conservadoras de famílias e comunidades.”

Degraus de proteção

A conversa sobre educação sexual começa cedo, antes mesmo de a criança compreender o significado de muitas palavras. Na Educação Infantil, as orientações giram em torno do reconhecimento do próprio corpo, do respeito aos limites e da nomeação correta das partes íntimas. Caroline explica que, nessa fase, é importante ajudar a criança a identificar os adultos de confiança, aqueles que podem, por exemplo, dar banho ou ajudar na troca de roupas. “Quando a criança sabe nomear as partes íntimas e falar com naturalidade sobre o próprio corpo, fica mais fácil pedir ajuda e se proteger, porque ela entende que o adulto não vai brigar nem se constranger”, observa.

Com o avanço para os Anos Iniciais do Ensino Fundamental, o diálogo ganha novas camadas. Além de reforçar os aprendizados da infância, a escola pode trabalhar questões sobre amizade, convivência, respeito mútuo e noções básicas de consentimento, como pedir licença para abraçar ou tocar em outra pessoa e entender que um “não” deve ser respeitado.

Nos Anos Finais do Ensino Fundamental, quando as mudanças corporais se intensificam e muitos começam a ter maior contato com conversas e informações sobre sexualidade, a escola pode ampliar o diálogo para incluir temas como puberdade, prevenção de infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) e gravidez precoce. “A abordagem, aqui, é preventiva: oferecer informação qualificada antes que os estudantes se deparem com situações de risco, ajuda-os a reconhecer sinais de perigo, entender o impacto das suas escolhas e buscar apoio de forma segura”, acrescenta.

Na etapa que antecede a vida adulta, as conversas ganham densidade. No Ensino Médio, entram em pauta a prevenção da gravidez e das infecções sexualmente transmissíveis, o uso correto de preservativos e a apresentação de diferentes métodos contraceptivos. Também se abrem espaços para discutir diversidade sexual e de gênero, consentimento e relacionamentos saudáveis, criando oportunidades para desfazer preconceitos. Para a especialista, o acesso à informação qualificada é um dos principais fatores de proteção e, também, uma forma de mostrar aos jovens os riscos de uma iniciação sexual precoce.

"Oferecer informação qualificada ajuda o estudante a reconhecer sinais de perigo e buscar apoio de forma segura." (Caroline Arcari)

A prevenção eficaz do abuso sexual envolve todos: família, escola, conselho tutelar, profissionais de saúde e assistência social. O professor tem um papel central, mas não atua sozinho, é preciso que toda a rede esteja articulada para que a criança seja ouvida e protegida.

Caroline conta que em uma escola de Educação Infantil, após uma atividade com Pipo e Fifi, livro de sua autoria criado para abordar, com crianças pequenas, temas como limites do corpo e proteção contra abusos, uma estudante revelou que sofria violência do tio. “Foi possível acionar a rede de proteção, interromper o ciclo de violência e garantir que ela tivesse acompanhamento psicológico. Isso não teria acontecido se o tema não tivesse sido trabalhado”, afirma.

O caso mostra que, quando a escola se posiciona e encontra apoio na rede, o trabalho de prevenção se transforma em proteção concreta.

Ela reforça que não se deve esperar que algo grave aconteça para garantir acesso à informação. “A criança tem direito de saber desde cedo que seu corpo é dela, que ninguém pode tocá-la sem consentimento e que existem adultos prontos para ajudá-la.”

Romper o medo

Segundo Caroline, os mitos que cercam o tema, como a ideia de que falar sobre sexualidade estimula o interesse sexual, precisam ser derrubados com informação segura. “A educação sexual não ensina a fazer sexo, mas a se proteger, a reconhecer abusos e a estabelecer relações saudáveis.”

Ela conclui com um chamado: “Se a gente quer reduzir os números alarmantes de violência sexual infantil, precisa parar de ter medo de falar sobre isso. Informação é proteção.”

A violência sexual contra crianças e adolescentes é um problema coletivo e a prevenção também precisa ser. Compartilhe este conteúdo com outros educadores, famílias e profissionais que atuam com crianças.

Informe-se, fale sobre o tema e apoie iniciativas que garantam a proteção da infância. Cada conversa aberta e baseada em evidências pode ser o primeiro passo para salvar uma vida. Informação é proteção e a mudança começa quando a gente decide agir.