As que movem a estrutura
A presença intelectual e política das mulheres negras tem deslocado práticas, reposicionado narrativas e reconfigurado o que a escola brasileira entende por liderança, currículo e pertencimento.

Por Karen Cardial

Há forças que transformam, sem alarde, uma instituição. Na educação básica brasileira, essa transformação se materializa no trabalho de mulheres negras que, ao ocupar a docência e funções de liderança, reposicionam debates, revisam escolhas pedagógicas e reorientam a forma como a escola compreende a si mesma e aos mundos que moldam a vida dos estudantes. É um movimento silencioso apenas na superfície, porque, na prática, ele desestabiliza estruturas profundas.

Para a educadora antirracista Lavini Castro, doutoranda em História Comparada pela UFRJ e idealizadora da Rede de Professores Antirracistas, a potência dessas profissionais nasce justamente do lugar histórico que ocupam: sustentam o cotidiano escolar, mas atuam também como produtoras de conhecimento, mediadoras culturais e formuladoras de práticas que raramente encontram espaço nas instâncias formais de decisão. “A estrutura da escola ainda opera segundo a lógica racista e patriarcal da sociedade. Por isso, mulheres negras não são imediatamente reconhecidas como capazes de liderar, ainda que estejam na base de tudo”, afirma.

Para Lavini, mulheres negras geram mudança quando sua presença vira ação: representatividade participativa, não apenas simbólica.

“A estrutura da escola ainda opera segundo a lógica racista e patriarcal da sociedade.” (Lavini Castro)

A desigualdade entre quem sustenta o chão da escola e quem decide os rumos dela não é fortuita. Para Lavini, não se trata apenas de ausência de oportunidades, mas de uma disputa simbólica: a escola, concebida como espaço hierárquico, ainda reserva prestígio a perfis brancos, especialmente nos cargos de coordenação e direção. “Mesmo quando uma mulher negra chega à gestão, o entorno demora a reconhecê-la como liderança legítima. Há sempre uma resistência inicial que revela o quanto a instituição naturalizou a ideia de que alguém como ela não combina com esse lugar”, explica.

Mas quando essas mulheres chegam, o cotidiano muda. Não por representatividade estática, mas por uma presença ativa, militante e organizada. Lavini lembra o impacto que viveu ao conduzir projetos sobre educação das relações étnico-raciais: “As meninas negras começaram a se posicionar mais, a imaginar trajetórias possíveis. Elas viam alguém que partilhava suas histórias e entendiam que poderiam construir caminhos parecidos.”

Outro exemplo é o trabalho da professora Mônica Aniceto, da rede pública do Rio de Janeiro, que, mesmo lecionando em uma escola de forte presença evangélica, abriu espaço para discutir religiões afro-brasileiras a partir de uma abordagem respeitosa, crítica e historicamente embasada – prática decisiva para ampliar repertórios e reduzir estigmas.

“As meninas negras começaram a se posicionar mais, a imaginar trajetórias possíveis.” (Lavini Castro)

A presença de uma mulher negra na docência, na coordenação ou na direção altera expectativas de futuro de forma concreta. Não é metáfora, é horizonte. Lavini narra o caso de uma estudante de uma turma de aceleração da aprendizagem, voltada para quem está em defasagem idade-série, que retomou o interesse pelos estudos ao reconhecê-la não como exceção, mas como possibilidade. “Ela sempre dizia que me via naquele lugar e que, se eu tinha conseguido, ela também poderia. Hoje está formada como técnica de enfermagem. Essa projeção, esse deslocamento interno, é transformador”, lembra a educadora antirracista.

O impacto, porém, não depende apenas da imagem. Depende do compromisso político com que essa profissional lê a escola. Uma mulher negra que assume liderança, mas reproduz valores racistas ou hierárquicos, não produz pertencimento, perpetua o modelo. A potência surge quando a presença se converte em prática cotidiana, consistente e intencional.

"A potência surge quando a presença se converte em prática cotidiana, consistente e intencional" (Lavini Castro)

Do ponto de vista institucional, a escola ainda opera com barreiras que silenciam ou diminuem a legitimidade das mulheres negras. Microagressões, interrupções sistemáticas em reuniões, descrédito intelectual e o estereótipo da “agressividade” quando a fala é apenas firme, compõem o repertório diário de obstáculos. “Há sempre quem valide mais a fala daquele professor branco de dicção acadêmica do que a narrativa de uma mulher negra que traz conhecimento atravessado pela experiência. A estrutura ainda define quem é considerado portador legítimo do saber”, analisa Lavini.

Transformar esse cenário exige outro tipo de gestão: abertura para escuta, revisão de critérios de liderança, políticas de rede que garantam tempo, material e respaldo institucional para que professoras negras possam propor, avaliar, criar e conduzir projetos. Não se trata de boa vontade, é política pública.

Quando o assunto é BNCC, Lavini faz um contraponto fundamental. A transversalidade prevista para a educação das relações étnico-raciais, diz ela, tem produzido interpretações superficiais, que tornam o tema eventual. Para avançar, é preciso tratá-lo como conteúdo cotidiano, com presença real em todas as áreas, não apenas em História ou Língua Portuguesa. “Transversalidade, do jeito que aparece no documento, vira algo que acontece quando dá. A escola precisa de um currículo que abra espaço para essas discussões, e não que dependa exclusivamente da militância individual do professor”, argumenta.

E é justamente nesse ponto que a presença de mulheres negras se revela decisiva: são elas que, posicionadas politicamente, introduzem debates contínuos, revisam escolhas pedagógicas e ampliam repertórios de crianças e jovens que raramente se veem como sujeitos de conhecimento.

Palavra que costura mundos

A produção literária de autoras negras tem alterado não só bibliotecas, mas a sensibilidade pedagógica das escolas. Para Lavini, é impossível desconsiderar o que Conceição Evaristo chama de “escrevivência”: narrativas que carregam cuidado, revisão crítica de estereótipos e escolhas estéticas que devolvem dignidade às imagens negras. “Quando uma mulher negra escreve, há uma curadoria atenta, uma preocupação com termos, com ilustrações, com a forma de representar. Isso fortalece identidades e inspira práticas pedagógicas mais responsáveis”, explica.

Casos recentes reforçam esse cuidado. Um exemplo é a polêmica em torno do livro infantil ABC da Liberdade: a história de Luiz Gama, o menino que quebrou correntes sem palavras, de José Roberto Torero e Marcus Pimenta, que acabou retirado de circulação após críticas de movimentos negros sobre a forma de representar o personagem. Quando a autoria não considera a experiência racial, o risco de estereotipar ou romantizar figuras históricas negras aumenta, e esse impacto chega direto às salas de aula.

Lavini defende que escolas e redes de ensino precisam ultrapassar ações pontuais e investir em dois eixos estruturais: formação docente contínua em letramento racial e mudança curricular efetiva. A legislação avançou ao tornar obrigatórios, pelas Leis 10.639/03 e 11.645/08, os estudos de história e cultura afro-brasileira e indígena. Mas, na prática, a efetivação desse direito ainda recai sobre o esforço individual de professores, especialmente mulheres negras, que sustentam essa pauta no dia a dia da escola. “Hoje, muitos professores ainda não tiveram acesso a uma formação séria em relações étnico-raciais. E, sem isso, a implementação vira algo isolado. A escola precisa criar condições reais para que o professor possa atuar com segurança, tempo e respaldo”, diz.

Mensagem de uma educadora antirracista, Lavini Castro:

“No Dia da Consciência Negra, minha mensagem às mulheres negras que sustentam a educação básica é menos um convite e mais um reconhecimento: continuem aprofundando esse trabalho bonito que vocês fazem: estudando, criando, abrindo caminhos e aprendendo com seus estudantes. Cada movimento de vocês altera a estrutura, mesmo quando isso passa despercebido.”

E talvez seja justamente essa a marca mais profunda da potência dessas mulheres: movem a escola sem pedir licença e, ao mover a escola, movem o país.