O ruído informacional que molda comportamentos e crenças faz da educação midiática uma urgência nas escolas, um campo que une leitura crítica, ética digital e responsabilidade cidadã.
Por Karen Cardial
A vida escolar já não cabe apenas nas paredes da sala de aula. Entre telas acesas e vozes que disputam sentido, estudantes crescem atravessados por fluxos constantes de informação, opinião e influência. O desafio agora é ensinar a distinguir o que informa do que manipula, o que conecta do que captura. Para o jornalista e pesquisador José Brito, especialista em educação midiática, cultura digital e combate à desinformação, esse é o ponto de virada: “Precisamos alfabetizar pessoas para a tecnologia antes de banalizá-la.”
A educação midiática, explica Brito, vai muito além do uso de ferramentas digitais: “Ela reúne um conjunto de práticas e habilidades que permitem ao cidadão acessar, produzir e interpretar criticamente o ambiente de mídias”, afirma. Dominar aplicativos ou editar vídeos é apenas a superfície de um processo profundo: compreender o papel das linguagens digitais na formação do pensamento, na construção das identidades e no exercício da cidadania.
Hoje o Brasil começa a consolidar diretrizes mais claras para essa formação. Um dos marcos é a Estratégia Brasileira de Educação Midiática (EBEM), criada em 2023 pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, com a participação de especialistas, pesquisadores e instituições da sociedade civil. Brito explica que esse documento propõe eixos de atuação que vão desde a infância até a vida adulta, passando por políticas de formação docente e o uso responsável de tecnologias. Outro avanço recente é o Guia para Uso de Telas, também elaborado pela Secretaria de Comunicação, que orienta famílias, educadores e escolas sobre o uso saudável de dispositivos digitais – um debate que, segundo ele, ganha força à medida que a tecnologia passa a mediar praticamente todas as relações humanas.
Na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a educação midiática aparece de forma transversal, especialmente nas competências gerais 5, 7 e 9. A competência 5 propõe o uso crítico, reflexivo e ético de diferentes linguagens, incluindo as digitais e midiáticas em contextos sociais e escolares. A competência 7 incentiva a argumentação com base em fatos, dados e informações confiáveis, fortalecendo o pensamento crítico e a cultura do diálogo. Já a competência 9 estimula a empatia, a colaboração e a responsabilidade em espaços físicos e digitais, reconhecendo o protagonismo dos estudantes. “A BNCC não cita diretamente a expressão educação midiática, mas suas competências criam um terreno fértil para o desenvolvimento dessas habilidades”, explica Brito. “Falar de cidadania hoje é falar sobre como as pessoas se informam.”
Além da BNCC, Brito lembra que há um conjunto de marcos legais que reforçam a urgência da educação midiática. Ele cita o Marco Civil da Internet, de 2014, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e o Estatuto da Criança e do Adolescente, que orientam a responsabilidade sobre o uso e a segurança das informações. Mais recentemente, o ECA Digital surge como um complemento importante, ao reconhecer direitos e deveres específicos no ambiente online. “Essas legislações compõem um cenário em que a educação midiática deixa de ser opcional e passa a ser uma exigência formativa e ética”, explica o pesquisador.
“Falar de cidadania hoje é falar sobre como as pessoas se informam.” (José Brito)
O contexto internacional também reforça a urgência do tema. De acordo com o Relatório de Riscos Globais do Fórum Econômico Mundial (2025), a desinformação e a polarização social estão entre as maiores ameaças à estabilidade global, ao lado de eventos climáticos extremos. “A escola não pode ficar à margem desse debate. Falávamos sobre a proibição de celulares nas escolas há dez anos e agora precisamos falar de novo, porque o jogo mudou. A interpretação da tecnologia avançou com a chegada da inteligência artificial, e já temos um conjunto consistente de informações sobre saúde mental, educação para o ambiente digital, combate ao bullying e ao racismo.”
Ele lembra que o uso precoce e sem supervisão de telas amplia a vulnerabilidade das crianças a conteúdos nocivos e à desinformação. “A recomendação é que até os dois anos de idade nenhuma criança tenha acesso a telas ou aparelhos, e que, antes dos 12, não possua aparelho próprio”, explica. “Quanto mais tarde melhor. As redes sociais, por sua vez, são indicadas a partir dos 13 anos, mas o ideal seria que o uso fosse permitido apenas a partir dos 16, com legislação de defesa e fiscalização do Estado brasileiro.”
Para Brito, o primeiro passo é compreender que as redes sociais não são neutras: moldam percepções, valores e até decisões políticas. “Colocamos o telefone na mão das pessoas antes de formá-las para o uso,” afirma. “Hoje, a responsabilidade é coletiva: das escolas, das famílias e das empresas, para formar cidadãos que saibam diferenciar fato de opinião, notícia de manipulação, engajamento de ódio.”
Ele observa que, nesse cenário, as plataformas digitais operam com uma lógica cada vez mais veloz e superficial. As interações, explica, são “intuitivas, efêmeras, fluidas e viciantes”, o que leva as pessoas a basear seus comportamentos em um fluxo constante de dados que recebem sem análise crítica. “A educação midiática entra justamente para romper esse ciclo automático de consumo e devolução de informação”, completa.
A luz da tela que amplia o olhar
Embora as políticas públicas avancem, a prática caminha devagar. Brito observa que poucas redes de ensino no país estruturaram de forma consistente um currículo de educação midiática. “O que vemos são experiências pontuais, projetos inovadores em escolas públicas e privadas que estão testando caminhos,” diz. Ele cita o exemplo da Escola MOPI, no Rio de Janeiro, que revisou seu currículo para incluir o uso crítico da tecnologia e da inteligência artificial em 2026. “É um trabalho cuidadoso, que começa com formação docente e passa pela integração das mídias em diferentes áreas do conhecimento.”
Outro caso inspirador vem das Naves do Conhecimento, projeto da Secretaria de Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro, que oferece oficinas e formações voltadas ao uso consciente das mídias digitais. “São espaços de experimentação, de formação cidadã e de encontro entre tecnologia e cultura local. Quando os jovens produzem mídia sobre os próprios territórios, aprendem a interpretar o mundo a partir de onde vivem,” explica.
Iniciativas como essas mostram que a educação midiática não depende apenas de infraestrutura, mas de intencionalidade e curadoria, o que reforça o papel pedagógico da escola no ecossistema informacional.
Para as escolas que ainda não começaram esse percurso, Brito recomenda um passo simples: criar grupos de checagem. “Como temos os grêmios estudantis, podemos ter grupos de verificação de fatos nas escolas,” propõe. “Eles aprendem a checar fontes, comparar versões, perceber a diferença entre opinião e evidência. É um exercício de cidadania e de autonomia intelectual.”
Para apoiar esse movimento, ele destaca o papel de instituições que têm se dedicado à promoção da educação midiática no Brasil e no exterior. Brito cita o Instituto Palavra Aberta e o programa Educamídia, a UNESCO, o Instituto de Tecnologia e Sociedade, além de organizações internacionais como a Common Sense Media e a MediaWise. “Esses centros produzem guias, pesquisas e formações que ajudam escolas e gestores a aprenderem a trabalhar o tema de maneira transversal e contextualizada”, expõe.
Para Brito, antes mesmo de ensinar a checar fatos, é preciso provocar perguntas. “Costumo perguntar aos meus alunos e aos colegas em palestras: Como você se informa? Onde está a informação? No influenciador, no rádio, no jornal, na televisão, num meme, num podcast, na literatura impressa ou numa rede social? As pessoas precisam conhecer o ambiente informacional do seu tempo. Um grupo de checagem na escola pode ser um bom primeiro passo”, orienta.
Olhar docente
A formação de professores e gestores é outro ponto essencial. Brito explica que preparar educadores para lidar com o universo digital vai muito além de ensinar a usar ferramentas. É preciso ampliar o repertório cultural e ético para compreender como a informação circula, quem a produz e com quais interesses. “Vivemos um momento de tensão no mundo, com o jornalismo sendo alvo de ataques e a circulação de notícias falsas desafiando democracias inteiras. Por isso, formar professores também significa formar leitores críticos da realidade”, diz.
Brito participa de diversos programas voltados à formação midiática em diferentes contextos. Um deles é o circuito de formação e comunicação da Usina de Itaipu, que reúne 399 municípios do Paraná e 35 do Mato Grosso do Sul. Nessas ações, jovens de comunidades locais aprendem comunicação ecológica, produzindo conteúdos sobre sustentabilidade e cidadania digital em seus territórios. Outro exemplo é o curso promovido pela Agência France-Presse (AFP) para jornalistas e educadores que cobrirão a COP 30, voltado para o combate à desinformação climática e para a checagem de fatos.
Para Brito, cada oficina, cada encontro e cada espaço de formação ajuda a ampliar o repertório dos educadores e a fortalecer uma rede nacional de letramento midiático. “A formação não deve ser apenas técnica, mas ética. A questão é: o que fazemos com a informação que temos?”, afirma.
“A formação não deve ser apenas técnica, mas ética. A questão é: o que fazemos com a informação que temos?” (José Brito)
Para Brito, a educação midiática deve ocupar um lugar real no currículo, não apenas nas entrelinhas. “A abordagem transversal sempre vai existir, e é importante que esteja em todas as áreas”, reconhece. “Mas precisamos investir em momentos específicos, planejados, em que os estudantes possam experimentar, produzir, investigar e refletir sobre as mídias.”
Segundo o pesquisador, essa combinação é o que dá densidade ao trabalho. Uma roda de debate sobre o noticiário local, um podcast feito pela turma ou uma análise de campanhas publicitárias em diferentes plataformas ajuda a entender como se constrói e se manipula a informação. “Essas experiências são o caminho para uma formação mais crítica e cidadã”, afirma.
Os equívocos surgem quando o tema é tratado de forma superficial, sem propósito claro ou reflexão sobre o papel das mídias na formação dos estudantes.
Na outra ponta, há práticas promissoras. Brito defende que a educação midiática se fortalece quando dialoga com o jornalismo, estimulando estudantes a investigar, questionar e produzir informação de qualidade. “Um bom jornalismo sempre será necessário, seja na escola ou na sociedade, porque ensina a checar, ouvir e argumentar,” diz.
“Um bom jornalismo sempre será necessário, seja na escola ou na sociedade, porque ensina a checar, ouvir e argumentar.” (José Brito)
Essa mudança já pode ser percebida em escolas que incorporaram práticas de letramento midiático. De acordo com o especialista, estudantes com acesso à educação midiática demonstram maior capacidade de análise, melhor desempenho em redações e maior consciência sobre o impacto das informações que consomem e compartilham. Eles passam a entender que o acesso à informação é também uma forma de participação política e social. “Quando um estudante se envolve com a política pública do bairro, da escola ou da região, entende o preço da passagem do ônibus, a importância de uma campanha de vacinação do SUS ou uma discussão sobre o meio ambiente e a exploração de petróleo na Foz do Amazonas, ele compreende o quanto tudo isso afeta diretamente a vida das pessoas e percebe que informação também é poder, que o conhecimento é parte do exercício da cidadania”, relata.
Ao pensar no futuro, o pesquisador acredita que o impacto será perceptível não apenas nas habilidades técnicas, mas na formação cidadã. “Quando um jovem entende o funcionamento das mídias, ele melhora sua escrita, seu raciocínio, sua argumentação e sua capacidade de diálogo,” conclui. “É assim que a educação midiática ajuda a construir uma sociedade menos vulnerável à desinformação e mais preparada para o convívio democrático.”