
Por Karen Cardial
Há escolas que, antes de punir, decidiram escutar. E, quando isso acontece, o cotidiano muda de tom. As manhãs começam com rodas de conversa de quinze minutos, em que estudantes e professores contam como estão chegando, o que sentem, o que esperam do dia. Parece pouco, mas, no silêncio, entre uma fala e outra, algo começa a se reparar.
Para Carolina Nalon, mediadora de conflitos e especialista em Comunicação Não Violenta (CNV), é assim que nascem as transformações mais profundas:
“A Comunicação Não Violenta é uma abordagem que transforma a maneira como a gente se comunica, por meio da empatia e da autenticidade. Ela nasce de uma escolha consciente: abrir espaço para o outro, escutar o que está vivo em cada pessoa.”
A CNV, sistematizada pelo psicólogo americano Marshall Rosenberg, propõe uma maneira ética de se relacionar. No ambiente escolar, ela se articula à chamada Cultura de Paz, conceito difundido pela Unesco que defende valores e atitudes orientados pela cooperação e pela responsabilidade coletiva. “A Cultura de Paz é o guarda-chuva; a CNV é a prática que nos ajuda a viver sob esse guarda-chuva”, observa Carolina.

“A escola precisa abrir espaço para falar de como as pessoas estão, não apenas do que elas fizeram.” (Carolina Nalon)
Embora a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) não mencione os termos Comunicação Não Violenta nem Cultura de Paz, seus pressupostos conceituais e éticos estão presentes de forma implícita e transversal, principalmente nas competências gerais, que falam de empatia, diálogo, respeito aos direitos humanos, cooperação e cuidado mútuo. “A CNV oferece ferramentas para vivenciar essas competências”, explica Carolina. “Ela está no modo como falamos e no modo como ouvimos. É a prática que sustenta tudo isso.”
Desde os anos 2000, políticas ligadas à educação em direitos humanos já vinham sendo incorporadas ao sistema educacional. Mas, como cita a especialista, o tema ganhou novo impulso com a intensificação dos episódios de violência nas escolas. Estados como São Paulo, Minas Gerais e Santa Catarina têm desenvolvido programas de mediação de conflitos e de promoção da convivência, ainda em número restrito, mas com resultados perceptíveis. Em muitas escolas, essas iniciativas se materializam em rodas de diálogo, assembleias e projetos de combate ao bullying.
Essas mudanças, porém, não nascem de grandes programas, mas de gestos cotidianos. “Uma escola pode começar com algo simples, como um check-in semanal de quinze minutos. É o momento em que cada pessoa compartilha seu estado emocional, suas expectativas e o que precisa de atenção naquele dia. Não é para responder nem debater, é só para escutar.”
Carolina lembra o caso de uma escola em que os professores foram brevemente formados em escuta ativa, e, depois de algumas semanas, os conflitos diários diminuíram visivelmente. “Os estudantes começaram a levar suas questões para as rodas. Eles aprenderam que existe um lugar legítimo para falar do que sentem. E, quando a escola oferece esse espaço, ela se torna também um ambiente de reparação.”
A especialista recorda ainda o episódio de uma menina de dez anos que, depois de ler o livro O Círculo – conversando a gente se entende, de sua autoria, viu o pai discutir com o irmão e interveio: “Vamos conversar em círculo. Cada um fala como se sente.” “Esse tipo de experiência mostra que o diálogo é aprendido. Quando uma criança entende que pode mediar uma conversa, ela descobre o poder de construir paz”, afirma Carolina.
“Formar para a convivência é tão essencial quanto ensinar a ler.” (Carolina Nalon)
Carolina compara o aprendizado da CNV à aprendizagem de uma nova língua: exige tempo, prática e convivência constante. “As iniciativas mais bem-sucedidas são aquelas em que a escola entende a CNV e a Cultura de Paz como parte do projeto pedagógico, não como um evento isolado. É preciso criar espaços regulares de formação e de supervisão, momentos em que os educadores possam refletir sobre os desafios que surgem no dia a dia.” Ela cita o programa do Instituto Tiê, que oferece oito módulos de quatro horas, incluindo supervisões práticas. “As escolas, muitas vezes, se assustam com a carga horária, mas acabam pedindo mais quando percebem o impacto. É um processo que transforma quem participa.”
O envolvimento das equipes, segundo ela, depende também de condições concretas de trabalho. “A gente fala muito de convivência, mas os professores estão sobrecarregados, cansados, vivendo o que se chama de mal-estar docente. É impossível falar de escuta e empatia se a própria equipe não se sente ouvida e cuidada.”
Nos programas que Carolina acompanha, os círculos de construção de paz são os dispositivos mais eficazes. Eles antecedem o conflito: servem para celebrar, agradecer, compartilhar histórias ou acolher o luto. Já os círculos restaurativos entram quando algo acontece, e aí a lógica muda. “No círculo restaurativo, olhamos para quem foi afetado e buscamos como reparar o dano. Na punição, olhamos para a regra quebrada e o castigo correspondente. É uma virada de olhar. E, quando a escola escolhe esse caminho, ela passa a olhar para a relação, não para o erro.”

“Fazer um círculo restaurativo é encarar o que aconteceu de verdade.” (Carolina Nalon)
Entre os equívocos mais comuns, Carolina cita a ideia de que basta uma oficina ou um encontro pontual para mudar a cultura escolar. “A CNV não é um treinamento, é uma escolha de convivência. Também não pode ser usada como técnica mecânica”. Ela ensina que a Comunicação Não Violenta parte de quatro movimentos essenciais: observar sem julgar, reconhecer sentimentos, compreender necessidades e formular pedidos claros. Quando a escola transforma esses gestos em um roteiro mecânico, sem vínculo real com a escuta e o afeto, a prática perde o sentido.
Ela observa que muitas escolas começam o ano com entusiasmo, promovendo rodas de conversa e assembleias, mas abandonam a prática por falta de acompanhamento. “Sem continuidade, tudo vira uma tarefa burocrática. E isso mostra o quanto o apoio institucional é essencial.” Quando a escola sustenta o processo, as transformações aparecem: redução de conflitos, professores mais estáveis emocionalmente, estudantes mais dispostos a dialogar e famílias que se aproximam da escola de outro modo. “O clima de confiança muda”, afirma Carolina. “As pessoas percebem que podem falar sem medo de julgamento. A escola passa a ser um laboratório de convivência, não um espaço de controle.”
Criar uma cultura de paz não é um projeto, é uma mudança de mentalidade
Hoje, diante do aumento das tensões sociais, a especialista considera que a CNV e a Cultura de Paz são caminhos urgentes. As escolas precisam compreender que a convivência não é um adorno do currículo, é o que o sustenta. Criar um núcleo de práticas restaurativas, oferecer formação continuada, investir em escuta, tudo isso deve se tornar diretriz pedagógica e administrativa. Só assim a escola cumpre seu papel: ensinar a viver junto. “Criar uma cultura de paz é aprender a recomeçar junto. Porque, na escola, consertar um dia é o mesmo que reinventar o amanhã”, finaliza.