
Por Karen Cardial
O dia começa antes de o sol raiar, atravessa notificações incessantes e termina tarde, com cadernos para corrigir e mensagens por responder. No meio desse cotidiano acelerado, Gustavo Estanislau, médico psiquiatra, doutorando em Psiquiatria pela UNIFESP, organizador do livro Saúde Mental na Escola: o que os educadores devem saber (Artmed) e membro associado do Instituto Ame sua Mente, voltado para a saúde mental nas escolas públicas, acompanha de perto docentes e gestores que buscam reinventar a rotina para não adoecer.
“As manifestações mais comuns observadas em docentes giram em torno do estresse, da ansiedade e de episódios depressivos”, explica Estanislau. “O estresse gera tensão muscular, um funcionamento emocional à flor da pele; a ansiedade faz a pessoa antecipar preocupações de forma desproporcional, e, quando esses estados se prolongam, surgem a desmotivação e a desconexão com o trabalho e a vida”, aponta o especialista.
Em seu consultório, Estanislau observa que muitos profissionais chegam com sintomas clássicos. “É bastante comum receber um educador com queixas de cansaço extremo e sensação de sobrecarga, sem mais prazer no trabalho”, relata. Em alguns casos, a sobrecarga atinge o limite do pânico: “Uma professora me procurou após ter sentido, no ônibus a caminho da escola, que poderia morrer ali. Precisou descer no meio do trajeto, em crise, e recebeu o diagnóstico de síndrome do pânico.”

Ambiente decisivo
Para o psiquiatra, é indispensável olhar para a organização do trabalho. “Na gestão do tempo é comum que os educadores tenham pouco espaço para se alimentar, descansar ou preparar suas aulas sem interrupção”, afirma. Ele descreve professores que almoçam com o celular ao lado, respondendo mensagens, corrigindo provas ou elaborando conteúdos no mesmo intervalo. “Até os momentos de descanso que deveriam acontecer em casa acabam se misturando com tarefas profissionais”, completa.
O espaço físico também faz diferença. “Ambientes barulhentos, desorganizados ou sujos exigem adaptação constante do cérebro, aumentando o estresse e a ansiedade”, diz. Ele se lembra de salas em que o som externo invade a aula e corredores onde o fluxo permanente de pessoas dificulta a concentração. Estanislau aponta mudanças simples que aliviam a sobrecarga mental, como isolar áreas mais silenciosas para estudo e reservar salas específicas para descanso.
Outro ponto recorrente é o impacto da relação com famílias. “Quando famílias deslegitimam a escola, o educador se sente pouco investido e desamparado”, alerta o especialista. Ele menciona situações em que pais questionam publicamente decisões pedagógicas ou métodos avaliativos sem diálogo prévio, o que mina a autoridade do docente e multiplica a pressão cotidiana.
“Quando famílias deslegitimam a escola, o educador se sente pouco investido e desamparado.” (Gustavo Estanislau)
Nos últimos anos, escolas multiplicaram “espaços de fala”, mas sem regras claras o resultado pode ser frustrante. “Eles só funcionam quando há convicção de que quem fala vai ser respeitado e acolhido”, explica Estanislau. Para ele, o sucesso dessas rodas depende menos do espaço físico e mais da construção cultural: silêncio e organização, regras explícitas de respeito, mediação competente e, sobretudo, informação prévia sobre saúde mental para reduzir estigmas e interpretações distorcidas. Sem esses elementos, a roda corre o risco de virar apenas um desabafo coletivo e até de gerar gatilhos traumáticos. “Quando se pede para alguém relatar situações muito dolorosas sem condução adequada, isso pode aumentar o sofrimento do grupo”, alerta.
O mediador, seja um coordenador preparado, um psicopedagogo ou outro profissional treinado, é peça-chave. “É o mediador que garante que todos falem e que a conversa seja direcionada para um lugar positivo”, diz.

Mediadores preparados transformam rodas de conversa em espaços seguros para docentes em sobrecarga.
Mudanças simples funcionam como marcador de cultura. “É um sinal claro de mudança cultural chegar a uma escola e ver educadores almoçando juntos, com o telefone de lado. Essa postura da gestão se dissemina positivamente”, conta Estanislau. Para ele, campanhas contínuas, não pontuais, ajudam a consolidar hábitos: hora de almoço sem celular, fins de semana protegidos, rodízio de tarefas para evitar sobreposição. São sinais de que a equipe pode viver “um momento de cada vez”, reduzindo ansiedade.
Ele cita ainda iniciativas bem-sucedidas em Goiás e Tocantins, onde redes vêm testando dar mais tempo de planejamento e formação aos docentes. Mesmo sem entrar nos detalhes de cada programa, destaca o princípio: oferecer períodos específicos para preparar aulas, fazer atendimentos pedagógicos e participar de formação continuada. “Isso é fundamental para manter uma saúde mental razoável”, afirma o psiquiatra. A tecnologia também pode ser aliada quando reduz tarefas repetitivas, como correção e feedbacks, liberando energia para atividades pedagógicas, complementa.
Treinar o olhar
Um fluxo mínimo para cuidar de quem cuida começa com formação básica em saúde mental para toda a equipe. Quando a equipe escolar entende um pouco mais sobre transtornos mentais, promoção e prevenção, identifica mais rápido sinais de sofrimento também entre os próprios profissionais, afirma Estanislau. Essa formação básica em saúde mental dá
instrumentos para que professores, coordenadores e gestores reconheçam mudanças de comportamento, sobrecarga emocional e risco de adoecimento nos colegas, não apenas nos estudantes. “Esse olhar amplo e informado leva a desfechos mais interessantes e positivos pra todo mundo”, diz o psiquiatra. Ele defende que protocolos claros e treinamentos periódicos criam um fluxo para acolher docentes em sofrimento, preservando a confidencialidade e garantindo encaminhamento adequado.
Valorização e autonomia docente
Segundo o especialista, não há receitas prontas, mas experiências concretas indicam caminhos. Em vez de medidas padronizadas, gestos consistentes de reconhecimento funcionam melhor, como devolutivas individualizadas que mostre ao docente que seu trabalho tem impacto real. “Quando esse retorno acontece de forma contínua, o professor se sente visto e se engaja mais”, observa.
Outro fator decisivo é a autonomia didática. “Quando o educador pode organizar suas aulas de acordo com seu estilo e com as necessidades da turma, ele preserva o sentido do trabalho e ganha satisfação”, diz Estanislau. Para ele, planos de carreira estruturados e programas de competências socioemocionais completam o quadro de proteção porque sustentam a permanência e a autoestima profissional.
Já incentivos mal desenhados podem ter efeito contrário. Estanislau cita os sistemas de bonificação rígidos, que engessam a prática e transformam o incentivo em pressão. “Quando o benefício vem atrelado a padrões que sufocam a autonomia, o efeito é o oposto do cuidado”, alerta.
Estanislau acredita que o cuidado com quem cuida é um gesto político poderoso, mais do que uma lista de ações. “Quando uma escola mostra, no cotidiano, que protege o tempo de seus educadores e lhes dá condições reais de trabalho, ela não está apenas evitando adoecimento, mas afirmando que ensinar é uma tarefa socialmente valiosa”, diz. Para ele, essa mudança de cultura é silenciosa, mas transforma tudo: horários respeitados, mediação qualificada e apoio entre pares passam a ser rotina, sustentando o trabalho docente com mais equilíbrio e sentido.