
Por Karen Cardial
O descompasso entre direito e realidade marca ainda boa parte da educação brasileira. Embora a Constituição Federal, a Lei Brasileira de Inclusão e a Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência garantam o acesso à educação para todas as pessoas, esse compromisso não se cumpre plenamente nas salas de aula. Para Mariana Rosa, doutoranda em Educação pela USP e conselheira do CNE (Conselho Nacional de Educação), integrante do Coletivo Feminista Helen Keller (grupo de ativismo por direitos das pessoas com deficiência) e fundadora do Instituto Cáue (voltado à inclusão e acessibilidade educacional), essa distância é fruto de uma herança histórica de segregação e de um modelo escolar que ainda não se reconfigurou para a diversidade.
Mariana diferencia três conceitos que muitas vezes se confundem nas escolas. A educação especial é uma modalidade transversal, que deve perpassar todo o sistema educacional com saberes, práticas e recursos para garantir o direito à aprendizagem. A inclusão escolar é a ação intencional de reparação histórica, que visa corrigir desigualdades e assegurar acesso e permanência. Já a educação anticapacitista vai além: combate os julgamentos arbitrários que hierarquizam corpos, comportamentos e inteligências a partir de uma suposta ideia de capacidade, substituindo a lógica do déficit pela lógica da pluralidade. Essa distinção não é semântica: sem ela, as escolas correm o risco de acreditar que, para se tornarem inclusivas, basta realizar adaptações individuais ou campanhas esporádicas, quando o que precisa ser modificado é o contexto inteiro.

“Não bastam adaptações individuais ou campanhas esporádicas: a escola precisa transformar o contexto inteiro para ser inclusiva.” (Mariana Rosa)
Essa mudança exige, antes de tudo, romper com a cultura da tutela. “Escolas, na intenção de amparar, acabam cerceando a autonomia dos estudantes com deficiência”, diz Mariana. Ela cita casos em que, por medo de acidentes ou por pressupor incapacidade, gestores e professores tomam decisões sem consultar o próprio estudante, limitam sua participação em assembleias ou retiram disciplinas inteiras do seu percurso. No extremo oposto, a negligência: quando o estudante é deixado à margem, sem apoio ou sem diálogo, isso também reforça a exclusão. Entre um polo e outro está a chave: ver o estudante como sujeito, não como laudo, não como problema individual. “É preciso mapear barreiras junto com os estudantes, transformando o diagnóstico em ação coletiva”, reforça.
“Escolas, na intenção de amparar, acabam cerceando a autonomia dos estudantes com deficiência, limitando sua participação na vida escolar.” (Mariana Rosa)
As redes públicas que caminham nessa direção descobriram que não basta treinar um profissional específico ou instalar rampas. A transformação passa por uma mudança de projeto político-pedagógico, pela formação continuada dos profissionais e por uma reorganização da própria cultura escolar. Mariana lembra de escolas que revisaram regras disciplinares para não penalizar automaticamente estudantes com comportamentos fora do padrão esperado. Outras abriram espaço para que esses estudantes participassem de assembleias e grêmios estudantis, incorporando suas demandas à agenda coletiva. Houve ainda redes que ampliaram o diálogo entre o atendimento educacional especializado (AEE) e a sala de aula comum, no contraturno, para construir estratégias mais consistentes. Nessas experiências, o professor de AEE não atua isolado: observa os espaços escolares, dialoga com professores regentes e famílias, acompanha estudantes em diferentes turnos e participa do planejamento pedagógico.
Esse modelo tem impacto direto no cotidiano. Mariana cita, como exemplo, o caso de crianças que não são oralizadas e, muitas vezes, só quando chegam à escola têm acesso a sistemas de comunicação alternativa. “Quando a tecnologia assistiva é incorporada ao cotidiano da escola – e não apenas ao AEE –, esses estudantes conseguem expressar seus desejos, saberes e modos de compreender o mundo”, afirma. A escola deixa de “adaptar” um corpo específico e passa a redesenhar práticas e recursos para todos, em um movimento que beneficia também estudantes sem deficiência, ampliando repertórios pedagógicos e comunicacionais.

“Quando a tecnologia assistiva é incorporada ao cotidiano da escola, estudantes antes invisíveis conseguem expressar seus desejos e saberes.” (Mariana Rosa)
A formação continuada é outro pilar que Mariana insiste em destacar. Professores e gestores precisam compreender o que é o capacitismo e como ele se manifesta no dia a dia. Isso inclui rever a forma de avaliar, diversificar as estratégias didáticas, garantir acessibilidade arquitetônica e comunicacional e abandonar a ideia de que a inclusão se resume a adaptações curriculares. Para a especialista, adaptar o currículo não é cortar conteúdos nem encolher experiências, mas diversificar práticas, ampliar modos de acesso e permitir múltiplas expressões de aprendizagem. “O que precisa ser ajustado, corrigido, transformado é o contexto, não o corpo, o comportamento ou a inteligência do estudante”, resume.
A narrativa da inclusão real também se faz de escolhas aparentemente simples. Ao reconhecer o estudante com deficiência como protagonista e o professor como agente de transformação, a escola sinaliza que não se trata de concessão, mas de direito e de um projeto pedagógico democrático. “Quando esses estudantes participam dos grêmios e conselhos, as demandas deixam de ser casos isolados e se tornam agenda coletiva”, diz Mariana. Para ela, essa é a virada cultural que transforma a escola inclusiva em realidade, superando décadas de improviso e segregação.