Ler é existir em voz alta

Por Karen Cardial

É na travessia entre disciplinas, espaços e vozes que a leitura começa a se espalhar. Fora da aula de Língua Portuguesa, ela se reinventa: ganha corredores, visitas e encontros. Sem campanhas para estimular o hábito de leitura, nem listas de títulos para cumprir metas por semestre, o que move as escolas são projetos autorais, criados por professores que entendem que formar leitores é dar voz à infância, ativar memórias e abrir espaço para a escuta.

Em Santa Gertrudes, no interior de São Paulo, a professora Marizete Alves colocou um microfone no centro da sala. Pedagoga com pós-graduação em Neurociência e 24 anos de atuação na rede pública, ela queria que os estudantes experimentassem a leitura como presença. Desde o primeiro ano do Ensino Fundamental, propõe que os alunos levem pequenos textos para casa, leiam para quem puder escutar, treinem a entonação, escorreguem nas palavras difíceis e tentem de novo. O compromisso é coletivo: na volta, cada criança lê para a turma usando o microfone, enquanto os colegas escutam com atenção.

A rotina se repete duas vezes por semana, e os pais não participam apenas como plateia. “Eles ensaiam com os filhos, corrigem a dicção, incentivam. Quando vejo, estão ali, lado a lado, construindo a leitura com as crianças”, conta a professora. Marizete filma as apresentações e compartilha com as famílias. “Faço questão de mostrar o resultado do que eles estão ajudando a construir. É um trabalho feito em conjunto, e eles se emocionam quando assistem.”

“A leitura vira gesto social quando tem destino: um colega, outra turma, um idoso da cidade.” (Marizete Alves)

“Quando a leitura tem plateia, a escuta vira parte do aprendizado.” (Marizete Alves)

O que começou como um treino de leitura em voz alta evoluiu para uma prática de pertencimento. As crianças passaram a ler não apenas entre si, mas para outras turmas da escola. Hoje, a maioria encara textos mais longos, com mais segurança e com um tipo de envolvimento que nasce do vínculo, da expectativa e da partilha.

“Quando sabem que vão ler para alguém, se envolvem de outro jeito”, diz Marizete. “Não é uma tarefa a ser cumprida, é algo que tem sentido.” Com recursos simples e escuta refinada, ela organiza os textos, adapta os níveis, acompanha cada estudante. Não há estrutura sofisticada, e sim um pacto silencioso entre professora, família e criança: a leitura importa, e todo mundo tem um papel ali. A prática construída no cotidiano da sala encontrou respaldo nos dados da rede. Em março de 2025, sua turma do segundo ano na EMEF Ivone Aparecida Gomes Palumbo obteve o menor índice de estudantes classificados como pré-leitores na Avaliação de Fluência Leitora. A avaliação, realizada dentro do programa Compromisso Nacional Criança Alfabetizada (CNCA), do Alfabetiza Juntos – SP, reconheceu oficialmente a educadora em uma cerimônia local. Para Marizete, foi a confirmação de que a escuta, a afetividade e a autoria fazem diferença quando mais importa: no início da trajetória leitora.

Formar leitores começa pelo professor

Para o educador capixaba Helder Guastti, eleito Educador do Ano pelo Prêmio Educador Nota 10 em 2024 e integrante do Top 50 do Global Teacher Prize em 2025, a leitura não começa no livro, mas na escuta. Ele atua há 17 anos na educação pública e hoje desenvolve o projeto social Confabulando, onde medeia encontros literários com crianças e famílias em sua comunidade, no Espírito Santo.

Seu trabalho é atravessado por uma ideia que o acompanha desde o início da carreira: a leitura pode ser uma revolução do afeto. “Ler, para mim, é fazer morada no mundo. E quando você se permite habitar pelas palavras, tudo se transforma: os afetos se ampliam, as relações se estreitam, e os conhecimentos transcendem.” O que ele propõe é mais do que incentivar o chamado hábito da leitura, é cultivar experiências leitoras verdadeiras, com espaço para vulnerabilidade, escuta e diálogo.

A leitura, diz Helder, precisa ser vivida antes de ser mediada. “Nós só ensinamos pelo exemplo. Não conseguiremos fazer nossas crianças se apaixonarem pelos livros se nós, que realizamos as mediações, não formos apaixonados também.”

Essa condição, segundo ele, não se resolve com slogans nem frases motivacionais. É preciso investir na formação leitora dos professores, com curadoria sensível, leitura compartilhada e criação de repertório.

Helder Guastti defende que a leitura literária seja tratada como experiência central na formação docente, não como acessório do currículo.

“Não conseguiremos formar leitores se quem medeia a leitura não for leitor também.” (Helder Guastti)

“Muitos profissionais não tiveram oportunidades reais de viver experiências leitoras durante sua formação. E hoje tentam formar leitores sem terem sido, eles mesmos, formados como tal. As redes precisam criar espaços de leitura para os professores, não só cobrar resultados”, orienta.

No Confabulando, projeto que desenvolve em sua comunidade, Helder promove mediações de leitura com crianças e famílias. O foco não está na estrutura física, mas no vínculo. “Às vezes, um tapete com um varal literário usado todos os dias, com trocas reais, vale mais do que uma sala linda que permanece intacta.” O que importa, reforça, é a experiência compartilhada e a escuta verdadeira que se constrói nesse processo. “Leitura é experiência. E experiência se constrói junto.”

A leitura, para Marizete Alves, não cabe só no livro. Ela pode estar numa canção antiga, numa história contada por outro ou num gesto de escuta. Em um de seus projetos mais recentes, a professora levou os estudantes para conhecer o asilo de Santa Gertrudes. A visita começou com uma roda de conversa: as crianças elaboraram perguntas e ouviram dos idosos quais músicas marcaram sua infância.

A professora registrou os depoimentos em vídeo, levou de volta à escola e compartilhou com a turma. A curiosidade virou encantamento e, depois, projeto. Durante semanas, as crianças ensaiaram as canções antigas com o apoio do professor de música, das famílias e de um dentista da cidade que também é cantor e se ofereceu para acompanhar o coral.

“Muitas das músicas eles não conheciam; perceberam que existia um outro tempo, uma outra infância. E se dedicaram para apresentar aquilo de volta”, conta Marizete.

"Ler também é escutar o outro, mesmo quando a história vem em forma de canção." (Marizete Alves)

A leitura, ali, se deu pelo corpo: cantando, os estudantes devolviam aos idosos o que haviam recebido: uma memória, um afeto, uma história. “Eles não estavam apenas cantando. Estavam narrando, devolvendo carinho. Foi uma leitura viva”, conta, emocionada.

A experiência mostrou que formar leitores também pode atravessar gerações, reviver histórias alheias e reconhecer no outro um lugar de escuta. “Quando a leitura faz sentido para eles, tudo se articula. Eles querem saber mais, querem contar, participar.”

Projetos que atravessam gerações

Além das leituras coletivas, Marizete propõe um desafio à imaginação da turma: a maleta do objeto misterioso. Enfeitada, a caixa percorre as casas dos estudantes. Cada dia, uma criança sorteada traz um objeto de volta, em segredo. Cabe a ela dar pistas para os colegas, até que o conteúdo seja descoberto e a leitura, mais uma vez, se transforme em jogo de linguagem.

“A gente trabalha as dicas, as características, o vocabulário”, explica a professora. “É o momento de mostrar que dar informação também é uma forma de ler o mundo.” Depois que o objeto é revelado, a turma constrói coletivamente uma frase sobre ele, pensando no uso da pontuação, na entonação e na estrutura do texto. “Apresento três versões da mesma frase, cada uma com uma pontuação diferente: ponto final, exclamação e interrogação. Lemos juntos e comparamos os sentidos. No início, fazemos isso em grupo, mas hoje, no segundo ano, muitos já conseguem perceber essas variações sozinhos”, explica a professora.

A atividade reforça o que Marizete repete ao longo de toda a sua prática: a leitura não é um fim, mas um meio de participação. Os estudantes não leem apenas para treinar fluência, mas para se expressar, escutar e interagir. A professora, atenta ao desenvolvimento de cada um, adapta os textos, acompanha os níveis de leitura e aposta em estratégias que criam sentido real para o que é aprendido.

“Quando eles percebem que vão compartilhar com alguém, o envolvimento é outro”, diz. “Seja lendo em voz alta, apresentando um objeto, cantando ou escrevendo, a leitura vira um gesto que tem destino.”

Para Helder, um dos entraves mais persistentes na formação de leitores é a ideia de que a leitura pertence apenas à aula de Língua Portuguesa. “É uma visão limitante e, infelizmente, ainda muito comum”, afirma. “As redes tendem a delegar toda a responsabilidade à professora regente dessa componente, quando, na verdade, somos todos responsáveis: gestores, coordenadores pedagógicos, docentes de todas as áreas.”

A literatura, diz ele, não está a serviço de ensinar um conteúdo específico, mas pode atravessar o currículo com potência. “Por que não usar um bom livro para enriquecer a aula de História, por exemplo?”, propõe.

A leitura, nessa perspectiva, não é um conteúdo entre outros. É um modo de entrar no mundo. Por isso, Helder defende que redes e escolas pensem a formação de leitores como um processo estruturante, que começa pela formação dos educadores, passa pela curadoria cuidadosa dos acervos e se expressa em práticas contínuas.

“Projetos não formam leitores sozinhos. É preciso ter repertório, curadoria e continuidade.” (Helder Guastti)

“Eu gostaria de ver um currículo literário nas escolas. Um que se perguntasse: que leitores queremos formar? Que experiências queremos proporcionar? Que transformações essa leitura pode provocar?” Segundo ele, o que mais prejudica o vínculo com o texto literário é justamente a distância entre o discurso institucional e a vivência real da leitura na escola.

“Projetos replicados, frases de efeito e ações soltas não bastam”, afirma. “O que forma leitores é a constância. É a escuta. É o encontro verdadeiro com o outro, com o texto, com o mundo, com a própria infância.”

A leitura só acontece quando deixa de ser tarefa e passa a ser vivida, no gesto de quem escuta, observa e encontra caminhos próprios para dar voz ao texto no cotidiano da escola.