Tramas da escuta. Fios da formação.

Por Karen Cardial

A formação docente mais transformadora nem sempre nasce de um curso novo, uma metodologia disruptiva ou uma planilha bem preenchida. Muitas vezes, ela começa com uma escuta real. Na sala da coordenação, onde o tempo é “espremido” entre demandas urgentes e cobranças institucionais, ainda há espaço — ou deveria haver — para construir vínculos, refletir coletivamente e transformar a escola a partir do que se vive, não apesar disso.

É dessa escuta comprometida que parte Giulianny Russo para defender um papel mais formativo — e menos burocrático — para o coordenador pedagógico. “Não se trata de oferecer respostas prontas, mas de construir coletivamente sentidos para o que vivemos na escola, e isso é profundamente formativo”, explica ela, mestra em Escrita e Alfabetização pela Universidad Nacional de La Plata (Argentina), pedagoga pela USP, fonoaudióloga pela PUC-SP e formadora de redes públicas e privadas.

Ela defende que fortalecer os vínculos com os docentes passa por práticas que valorizem a experiência profissional e reconheçam que ensinar e aprender são processos complexos, atravessados por contradições. Ela explica que o coordenador que abre espaços reais de escuta e estudo — e se coloca como parte do processo — contribui para que professores elaborem dúvidas, frustrações e também conquistas.

“Humanizar a gestão é construir confiança, sustentar processos, criar espaços para o conflito produtivo. Escutar é formar.” (Giulianny Russo)

“Não se trata de oferecer respostas prontas, mas de construir coletivamente sentidos para o que vivemos na escola, e isso é profundamente formativo” (Giulianny Russo)

Essa perspectiva formativa encontra barreiras concretas. Uma das mais recorrentes é o peso da burocracia na rotina dos coordenadores. Entre planilhas, escalas de substituição, relatórios e cobranças de última hora, o trabalho do coordenador pedagógico corre o risco de se dissolver no cotidiano escolar. Em meio à sobreposição de demandas, o que deveria ser prioridade — o acompanhamento e a formação dos docentes — muitas vezes se transforma em exceção. “O coordenador pedagógico trabalha num espaço de tensões: entre a urgência e a importância, entre o que é exigido e o que é necessário”, afirma a especialista.

Trata-se de um equilíbrio delicado, que não se resolve com fórmulas, mas com escolhas intencionais. Giulianny destaca que, embora a Base Nacional Comum para a Formação dos Diretores Escolares (BNC-Diretor) não tenha sido pensada diretamente para a coordenação pedagógica, tem servido de referência prática em diversas redes de ensino. “A dimensão pedagógica atribuída ao diretor pressupõe uma articulação constante com o coordenador. Em muitas redes, a ausência de uma diretriz nacional específica para a coordenação levou à apropriação da BNC-Diretor como ponto de partida”, explica.

Essa sobreposição de papéis e a ausência de diretrizes claras são vivenciadas, na prática, por profissionais como Valmir José Aureliano, professor da Rede Municipal de Ensino de América Dourada, na Bahia. Com quase duas décadas de atuação na coordenação pedagógica, ele observa que o tempo formativo precisa ser protegido com intencionalidade e organização. “O Coordenador Pedagógico tem como principal função garantir a formação continuada dos professores, por meio de um plano de formação construído com base nas necessidades identificadas na sala de aula”, afirma Valmir, que também é mestrando em Tecnologias Emergentes em Educação e formador de professores.

Segundo ele, um dos caminhos para isso tem sido o trabalho articulado com a direção escolar. “As demandas administrativas ficam sob responsabilidade da diretora, que também me apoia nos espaços formativos, como o HTPC (Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo) e os encontros de formação continuada realizados na própria escola.”

O problema é que essa dimensão, a mais essencial para o trabalho formativo, é também a mais ameaçada pela sobrecarga. Giulianny observa que isso ocorre não apenas por excesso de tarefas, mas também pela falta de clareza sobre os limites e prioridades da função. “Algumas demandas não deveriam recair sobre o coordenador. Outras até fazem parte, mas não podem se sobrepor àquelas que dizem respeito ao núcleo do trabalho: a formação e o acompanhamento dos professores.”

Foi o que aconteceu em uma escola pública em que ela própria atuou como formadora. Ao mapear suas atividades, a coordenadora pedagógica local percebeu que mais da metade do seu tempo era consumido por tarefas administrativas — desde a organização de escalas de professores eventuais até o envio de documentos institucionais. A mudança começou quando a equipe gestora passou a construir, coletivamente, uma agenda semanal com “blocos protegidos”, dedicados a atividades pedagógicas: observação de aulas, reuniões de planejamento e momentos de estudo com os docentes. O simples gesto de visualizar o uso do tempo permitiu reorganizar a rotina e redistribuir tarefas com o apoio da secretaria, da direção e até dos inspetores.

“A escuta ativa com professores e alunos tem sido essencial para fundamentar decisões formativas com base no que realmente importa.” (Valmir José Aureliano)

“Há falta de clareza sobre os limites e prioridades da função do coordenador pedagógico” (Giulianny Russo)

“É preciso disputar o tempo pedagógico”, afirma Giulianny. “Proteger os momentos de formação requer pacto com a gestão, uso intencional dos registros e criação de rotinas reflexivas, ainda que curtas. O essencial nem sempre é o mais ruidoso, mas é o que sustenta a transformação”, afirma.

Entre as estratégias sugeridas pela especialista, estão o mapeamento e a categorização das tarefas cotidianas (pedagógicas, administrativas, relacionais), a delegação de responsabilidades possíveis e o uso dos registros como ferramentas analíticas, não apenas burocráticas. “Manter a centralidade do pedagógico exige negociação e pactuação coletiva. Cuidar da dimensão relacional, por exemplo, fortalece vínculos e cria as condições para a formação”. Giulianny explica que participar das decisões institucionais garante o espaço para que o trabalho pedagógico floresça.

Uma mudança concreta nas práticas docentes não começa, necessariamente, com um novo protocolo ou uma cobrança direta. Muitas vezes, ela se inicia com uma escuta cuidadosa, um olhar atento às resistências e uma aposta nas potências que ainda não se realizaram. Foi assim que, em uma escola municipal acompanhada por Giulianny, o tema da leitura literária saiu do papel e se transformou em prática cotidiana — sem imposições, mas com intencionalidade e compromisso formativo.

Naquela escola, a coordenadora pedagógica identificou que havia um certo incômodo entre as professoras em relação à leitura diária para as crianças. Muitas entendiam que essa tarefa deveria ficar restrita aos dias de visita à sala de leitura e não fazia parte do planejamento cotidiano. Em vez de abordar o problema como uma falha a ser corrigida, a coordenadora optou por uma abordagem formativa: propôs um percurso coletivo de estudos sobre a formação leitora, com foco tanto nas crianças quanto nas próprias professoras.

Foram organizados encontros regulares com múltiplas camadas de envolvimento: vivências de leitura, análise do acervo da escola, partilha de práticas, reflexões sobre o papel da literatura no desenvolvimento infantil e articulações com a trajetória leitora das docentes. Com o tempo, esses momentos passaram a ser estruturados com base em situações reais trazidas pelas professoras, tornando a formação viva, contextualizada e ancorada no cotidiano.

“O essencial era criar um espaço seguro em que dúvidas e inquietações pudessem emergir, onde o erro fosse tratado como ponto de partida. não como obstáculo. A teoria entrava em cena não como um receituário, mas como uma lente para compreender e qualificar a prática”, pontua a especialista.

O movimento foi ganhando densidade. As professoras começaram a experimentar novas estratégias em sala de aula, a coordenadora acompanhou algumas dessas práticas e devolveu registros comentados, não como instrumentos de avaliação, mas como apoio formativo. O efeito foi visível: as crianças demonstraram maior envolvimento nas atividades de leitura, e as docentes passaram a tratar o momento literário com mais intencionalidade e prazer.

“O essencial é criar um espaço seguro, onde dúvidas e inquietações possam emergir e onde o erro seja tratado como ponto de partida, não como obstáculo” (Giulianny Russo)

Giulianny relata que essa transformação só foi possível porque a coordenadora entendeu que a dimensão relacional não é apenas um meio para o pedagógico acontecer — ela própria é um fazer pedagógico. “Humanizar a gestão é construir confiança, sustentar processos, criar espaços para o conflito produtivo. Escutar é formar”, afirma.

Essa escuta transformadora, segundo Valmir, exige coragem para disputar o calendário escolar. “A unidade escolar deve garantir tanto o direito dos estudantes aos 200 dias letivos quanto o direito dos profissionais à formação continuada, conforme previsto na LDB e na Lei do Piso” No entanto, Valmir explica que tem sido desafiador torná-los efetivos diante das limitações práticas: “Por isso, venho constantemente sinalizando à Secretaria Municipal de Educação a necessidade de flexibilizar o calendário da rede.”

“Essa escuta transformadora exige coragem para disputar o calendário escolar” (Valmir Aureliano)

Para Giulianny, o coordenador pedagógico que se coloca como parceiro em vez de avaliador cria um ambiente em que a escuta é legítima, o erro é tratado com respeito e o saber circula. “Formar professores não é trazer respostas prontas. É criar as condições para que as perguntas possam existir, para que os caminhos possam ser buscados em conjunto”, destaca.

Essa postura formativa, pautada por vínculos éticos e processos contínuos, não anula as tensões do cotidiano — mas permite que elas se tornem matéria-prima para o desenvolvimento. “O avanço na prática docente é resultado de implicação mútua. Quando o coordenador se compromete com os processos e caminha junto com a equipe, a formação se torna possível, legítima e transformadora”, aponta.

“A escola deve garantir o direito dos estudantes aos 200 dias letivos e à formação continuada dos professores” (Valmir Aureliano)

Para ela, o impacto do trabalho está nos vínculos criados, nos sentidos compartilhados, nos movimentos que provocam reflexão. Não se trata de dar conta de tudo, mas de sustentar — com coragem e intencionalidade — um projeto coletivo. “Nosso trabalho transforma, não por heroísmo individual, mas porque está sustentado na crença de que toda escola pode ser espaço de formação viva”. Sua provocação é clara: “E se olhássemos para as contradições do nosso trabalho não como obstáculos a serem superados, mas como motor da nossa ação formativa?”, finaliza.