
Por Karen Cardial
A tarde estava quente, como tantas outras no coração do Brasil. Na aldeia xavante Etenhiritipá, localizada em Ribeirão Cascalheira, no estado de Mato Grosso, o som do vento entre as árvores misturava-se às vozes dos estudantes reunidos sob a sombra generosa de um jatobá. A escola, ali, é diferente. As paredes são simbólicas, delimitadas pela troca de saberes que atravessam gerações. Sob o olhar atento de Severiá Maria Idioriê, a narrativa de seu povo ganha vida, não nos livros didáticos, mas na oralidade que ecoa há séculos. “Nós aprendemos sentindo, compartilhando histórias. Não há um professor acima, há uma comunidade que ensina e aprende”, reflete a educadora, que há anos transforma a educação na aldeia.

Essa transformação, no entanto, não é fácil. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) exige que a história e a cultura indígenas sejam abordadas em todas as etapas da Educação Básica. Mas como fazer isso sem cair em superficialidades? Severiá conhece de perto esse desafio. Graduada em Letras pela Universidade Católica de Goiás e mestra em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso, ela sabe que não basta mencionar os povos indígenas como um capítulo isolado nos livros didáticos: “É preciso integrar os saberes indígenas em todas as disciplinas. Matemática, Física e Química também podem abordar nossos conhecimentos”.
Severiá explica que, ao ensinar Física para os estudantes xavantes, é possível utilizar a experiência da caça como exemplo: “Quando um indígena atira uma flecha para pegar um peixe, ele calcula o ângulo de entrada na água para que ela não desvie por causa da refração. É Física, mas não está nos livros didáticos”. Ao trazer essa abordagem para a sala de aula, ela conecta o conhecimento científico ao saber tradicional, tornando o aprendizado significativo e contextualizado.
“A invisibilidade não está na ausência, mas na forma como a sociedade escolhe não ver nossa diversidade cultural.” (Severiá Idioriê)
No entanto, a valorização cultural não é um desafio exclusivo dos povos indígenas. Kaká Werá, referência na valorização das culturas tradicionais, escritor e educador dos Tapuia e uma das principais vozes da literatura indígena no Brasil, destaca que as comunidades quilombolas também enfrentam preconceitos cristalizados na educação: “A história dos quilombolas é muitas vezes reduzida a capítulos sobre escravidão, ignorando sua riqueza cultural e sua contribuição para a identidade brasileira”. Ele ressalta que as práticas comunitárias das comunidades quilombolas, como as rodas de conversa e as manifestações artísticas, são poderosas ferramentas pedagógicas que poderiam enriquecer o currículo escolar.
Para Kaká, “Nas tradições orais, não há análise crítica, mas o compartilhar de sentimentos. Esse exercício desenvolve percepção e expressão emocional, algo essencial para uma educação integral”. Kaká cita a prática de contação de histórias como uma estratégia poderosa para envolver os estudantes e transmitir valores ancestrais: “Quando as crianças vivenciam a tradição oral, elas aprendem a escutar, a sentir e a respeitar o outro”.
Severiá complementa essa visão ao destacar que, assim como nas aldeias indígenas, as comunidades quilombolas preservam saberes ancestrais que vão muito além do que é ensinado na escola: “A oralidade e a vivência comunitária são essenciais na educação quilombola. Eles compartilham conhecimento pela música, pelas danças, pela convivência. Esse aprendizado experiencial não cabe nos moldes tradicionais de ensino, mas é uma riqueza cultural que precisa ser reconhecida”. Para ela, incluir a cultura quilombola nas escolas não é apenas uma questão de representatividade, mas de justiça histórica.
“Ainda se vê os quilombolas como povo isolado no tempo, presos a imagens folclóricas. Mas suas culturas estão vivas, dinâmicas, e influenciam a sociedade contemporânea.” (Severiá Idioriê)
No entanto, muitos professores sentem-se despreparados. A formação docente no Brasil ainda carrega preconceitos implícitos, tratando a cultura indígena e quilombola como algo do passado. Severiá explica que a maioria das licenciaturas não aborda a história e a cultura indígena de forma transversal, limitando-se a conteúdos pontuais: “É necessário desconstruir essa visão eurocêntrica e valorizar os conhecimentos tradicionais como parte essencial da formação acadêmica”. Ela defende a inclusão de módulos específicos sobre educação indígena nas licenciaturas, além de programas de formação continuada que ofereçam apoio pedagógico aos professores não indígenas.
“Quando as crianças vivenciam a tradição oral, elas aprendem a escutar, a sentir e a respeitar o outro.” (Kaká Werá)

Kaká Werá acrescenta que a formação docente precisa preparar os educadores para lidar com a diversidade cultural nas escolas. Ele critica a abordagem uniforme que desconsidera as especificidades de cada etnia: “Não existe um indígena, mas, sim, uma pluralidade de povos chamados indígenas. São mais de 300 etnias, com línguas, tradições e modos de vida próprios”. Para Kaká, é fundamental que os professores compreendam essa diversidade e sejam capazes de adaptar suas práticas pedagógicas para promover uma educação intercultural.
Na aldeia Etenhiritipá, Severiá vê o resultado dessas práticas inovadoras. Ela promove círculos de diálogo, em que cada voz é ouvida sem hierarquias, resgatando o aprendizado coletivo. Severiá também integra os anciãos às aulas, fortalecendo o vínculo entre gerações: “Não é apenas ensinar sobre nossa cultura, é permitir que nossos estudantes vivam sua própria cultura na escola”.
Enquanto o vento continua a soprar entre as árvores do jatobá, na aldeia Etenhiritipá, Severiá vê o futuro nas crianças que escutam os anciãos com a mesma reverência que escutam seus professores. Elas carregam, no olhar curioso, a força de um povo que resiste ao tempo e o transforma.